9 sítios arqueológicos são descobertos em obras do metrô de São Paulo
Nove sítios arqueológicos foram encontrados em escavações das obras da linha 6-laranja do metrô de São Paulo, prevista para ser entregue em 2025. Esses locais, com vestígios de antigas ocupações humanas na cidade, foram descritos em relatórios da concessionária responsável pela construção.
Os documentos, obtidos pela BBC News Brasil, foram enviados ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), órgão federal que, por lei, é responsável por todos os sítios do Brasil e a quem cabe autorizar a remoção e pesquisa dos objetos.
Nas últimas semanas, a descoberta de uma dessas áreas, no tradicional e turístico bairro do Bixiga, na região central da capital paulista, está mobilizando o movimento negro, historiadores, arqueólogos e moradores. Eles formaram um grupo para acompanhar a retirada dos objetos e reivindicar a preservação da história do local.
Os vestígios – peças de cerâmica e vidro – foram encontrados a três metros de profundidade. Para historiadores e arqueólogos, o sítio está na área do antigo quilombo Saracura, uma das maiorias aglomerações urbanas de resistência do povo negro e que ocupou a região por volta do século 19.
No mesmo terreno, funcionou por décadas a quadra da escola de samba Vai-Vai, fundada em 1930 e maior campeã do Carnaval paulistano, e onde será construída a futura estação 14 Bis da linha 6-laranja, que leva o nome da praça em frente.
Os documentos apontam que outros oito sítios arqueológicos foram encontrados nas escavações ao longo da linha. O ramal, todo subterrâneo, terá 15 estações em 15,3 km de extensão, ligando o bairro da Brasilândia, na Zona Norte, à região da Liberdade, no Centro.
Eles foram descobertos por arqueólogos da empresa A Lasca, contratada pela concessionária Linha Uni, responsável pela construção e operação da linha.
Além do material da estação 14 Bis, outros oito sítios arqueológicos foram identificados no ano passado em bairros como Pompeia e Água Branca, na Zona Oeste da cidade.
Os vestígios estavam enterrados nos terrenos das futuras estações Água Branca (dois pontos), Santa Marina, Freguesia, SESC Pompeia e São Joaquim, além da chamada VSE (Ventilação e Saída de Emergência) Sara de Souza e Tietê – este último, sobre uma falha geológica conhecida como Taxaquara.
A maioria dos vestígios humanos remete ao período da industrialização de São Paulo, da segunda metade do século 19 e início do século 20.
No sítio Sara de Souza, por exemplo, foram resgatados 33.079 objetos e fragmentos, entre louças, cerâmicas, vidros, pratos, garrafas, pedaços de madeira e metal, além de uma estrutura semelhante a uma galeria de água.
Segundo o relatório enviado ao Iphan, os vestígios “se relacionam a sucessivos aterramentos da área realizados a partir de remanescentes do processo produtivo de fábricas de louças, como a Fábrica Santa Catharina e a Indústrias Reunidas Fábricas Matarazzo.”
Em outro sítio, na avenida Santa Marina, também na Água Branca, foram encontrados 1.165 peças arqueológicas, entre louças, vidros, cerâmicas e outros objetos. Segundo relatório da empresa A Lasca, os objetos remetem aos séculos 19 e 20 e provavelmente estão ligados a olarias e a uma antiga fábrica de vidros.
Outros sítios, como o Pompeia e São Joaquim, tinham uma quantidade menor de objetos, principalmente itens típicos de lixeiras domésticas, como garrafas de bebidas, pratos, xícaras e vasos de cerâmica, provavelmente descartados pelos antigos moradores dos bairros.
Com exceção do sítio do quilombo Saracura, os objetos dos outros locais já foram retirados com autorização do Iphan.
Segundo a Linha Uni, todos os milhares de objetos encontrados estão sob a guarda provisória da empresa de arqueologia A Lasca, “pois estão em processo de curadoria, que corresponde à higienização, catalogação e análise, a partir da qual será produzido relatório complementar”.
Depois desse processo, diz a Linha Uni, o material será encaminhado ao Centro de Arqueologia de São Paulo, órgão da Prefeitura.
Quilombo Saracura
Já a descoberta do sítio do quilombo Saracura está movimentando o bairro do Bixiga, ocupado principalmente pela população negra e de baixa renda, além de migrantes nordestinos e de países africanos.
No século 20, a área era conhecida como “Pequena África”, mas depois foi associada à imigração italiana (até hoje, há famosas cantinas por ali, embora a presença de descendentes do país europeu tenha diminuído).
A poucos metros do quilombo, ficava o rio Saracura, afluente do ribeirão Anhangabaú, ambos canalizados e soterrados por obras de urbanização – em períodos de chuva forte, a área sofre com alagamentos. Hoje, a região abriga a praça 14 Bis e a avenida 9 de Julho, uma das mais importantes ligações entre a Zona Oeste e o Centro de São Paulo.
Nas últimas semanas, moradores do Bixiga formaram um grupo para acompanhar os trabalhos de resgate dos vestígios arqueológicos e participar das decisões sobre o que vai acontecer com o sítio e com os objetos ainda a serem encontrados.
No sábado (2/7), o grupo fez uma manifestação em frente às obras da estação, evento que reuniu ativistas do movimento negro, religiosos, poetas, músicos, professores, políticos de esquerda e antigos moradores.
O movimento reivindica a construção de um memorial ao quilombo e à Vai-Vai, além da troca do nome da estação de 14 Bis para Saracura Vai-Vai. A obra foi orçada em R$ 14 bilhões e está prevista para ser entregue em 2025.
“A gente quer a preservação do sítio no local e um memorial com um projeto educacional para que essa história possa ser contada”, explica a jornalista Luciana Araujo, ativista do movimento negro e moradora do Bixiga desde 2007.
“Não somos contra a estação do metrô, porque ela vai beneficiar a população do bairro, que depende do transporte público. O Bixiga é conhecido como um bairro italiano, por causa da imigração, mas ele nasceu do quilombo e tem sua história marcada pela ocupação da população negra. E a história do povo negro não pode ser apagada”, diz ela, uma das porta-vozes do movimento Saracura Vai-Vai.
Segundo relatório da empresa A Lasca, “as características do material arqueológico no sítio apontam para um período mais recente, provavelmente associado à primeira metade do século 20, momento em que vemos a consolidação da malha viária e o aterramento do córrego (Saracura).”
Porém, no terreno, foram identificados dois pontos onde podem existir outros vestígios. Por isso, a expectativa é que novas escavações possam revelar material diretamente ligado ao Quilombo Saracura e à história da população negra que historicamente ocupa o Bixiga.
A concessionária Linha Uni afirma que está realizando obras de contenção para depois entrar no sítio arqueológico.
Na terça-feira (5/7), dois arqueólogos ligados ao movimento Saracura Vai-Vai visitaram o terreno. Um deles era Rossano Bastos, ex-coordenador do Iphan e membro da Rede de Arqueologia Negra, a descoberta evidencia uma disputa pelo território e pela história da população negra da cidade.
“Não estamos discutindo se a área era o quilombo de fato, pois essa informação já é conhecida e registrada pela historiografia. O que queremos é que esse nosso território negro seja valorizado segundo os desejos do povo negro e de nossos ancestrais”, afirmou.
“Esse levante do quilombo precisa nos trazer um lugar, um museu, para compreendermos a história dos negros desse quilombo, dos negros do Bixiga. Aqueles açoitados, escravizados, assassinados vão poder ser reconhecidos e tratados nesse lugar que entendemos ser a estação modelo da inclusão racial do povo negro de São Paulo”, disse Bastos.
Já o sambista paulistano Thobias da Vai-Vai, presidente de honra da escola, afirma que “acredita na sensibilidade da concessionária” em relação aos pedidos do movimento. “Eles vão sair bem na foto se ajudarem nessa homenagem à história da população negra”, disse, por telefone.
Segundo a Linha Uni, existe uma pesquisa histórica em andamento para “compreensão dos materiais e estruturas que podem ser encontradas na pesquisa de campo”.
“Quando se trata de um sítio arqueológico histórico remanescente de um assentamento humano de longa duração, como é o caso de um quilombo urbano, é fundamental que as informações históricas escritas, iconográficas e orais contribuam para a compreensão do cotidiano de vida das pessoas que no passado se estabeleceram naquele solo”, disse a empresa.
Linha atrasada
A descoberta dos milhares de objetos arqueológicos não foi divulgada à população, embora os sítios sejam patrimônio público e tenham importância para conhecer e entender a história da resistência do povo negro e da industrialização da cidade.
A informação foi relatada apenas ao Iphan por meio de relatórios de pesquisa de campo, disponíveis em um repositório do órgão federal.
De acordo com a Linha Uni, o tema “será amplamente abordado, por meio de atividades que estão sendo planejadas para ocorrerem durante o Programa Integrado de Educação Patrimonial da Linha 6”.
“Este programa tem, entre seus objetivos, divulgar o conhecimento histórico gerado através das pesquisas desenvolvidas no sítio arqueológico, com o envolvimento e participação da sociedade, como um bem da nação”, afirmou a concessionária.
Segunda o Linha Uni, o trabalho de pesquisa e resgate dos sítios não alteraram o cronograma de obras.
Lançada em 2008, a linha 6-laranja foi prometida inicialmente para 2012. Ela foi celebrada como a primeira parceria público-Privada no país a construir e administrar uma ligação de metrô: foi apelidada de “linha das universidades” por causa de suas estações próximas a grandes instituições de ensino, como a PUC, Mackenzie e FMU.
Fonte: BBC Brasil