Doações despencam na pandemia e situação agrava fome de famílias em comunidades de todo o Brasil
Desemprego, alta nos preços dos produtos e queda na renda fazem com que mais pessoas dependam de cestas para sobreviver
Mais de 33 milhões de brasileiros passam fome, de acordo com dados divulgados pela Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional). O impacto da perda de renda e desemprego pode ser sentido de forma mais intensa nas comunidades do país. As doações despencaram e cada vez mais famílias buscam por uma cesta básica.
Apenas 4 a cada 10 lares conseguem ter acesso à alimentação. Em dois anos de pandemia, 14 milhões de pessoas entraram para o grupo que sofre com a fome e se somaram aos 19 milhões já existentes.
“A fome é a expressão mais trágica do empobrecimento de grande parcela da população”, afirmou Nilson de Paula, pesquisador da Rede Pensann.
Em Heliópolis, a maior favela de São Paulo, cerca de 3.000 cestas eram distribuídas ao mês antes da Covid-19. Hoje, esse número não chega a 100.
“A procura está muito grande e temos recebido pouquíssimas doações. Para quem trabalha, os preços subiram e os salários diminuíram, assim compram menos. O desemprego está alto ainda. Quando chega uma cesta, a gente entrega para a família que não tem o que comer. Não tem mais data para entrega coletiva”, afirma Antônia Cleide Alves, presidente da Unas (União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região).
A tragédia só veio para escancarar e potencializar a miséria que já estávamos vivendo. Junto a isso, vieram as perdas e as mortes
Francisca Ferreira de Lima tem 74 anos e, por causa de um problema na coluna, quase não consegue sair da cama. É moradora de Heliópolis “desde que tudo aqui era só barraco”. Hoje vive de doações porque a aposentadoria só dá para pagar os remédios e algumas despesas.
“As coisas estão caras, os preços subiram. Ninguém tem condições de comprar carne. Não recebo todo mês doação. Com a cesta básica, eu tenho o que comer. Falta mistura, o gás é caro. Tô em cima da cama, sem poder andar. Quando andava, eu mesma ia atrás de cesta. É difícil”, revela.
Dona Francisca tem dois filhos que estão desempregados e não conseguem ajudá-la financeiramente. O marido morreu em fevereiro e ela não tem mais a Loas [benefício sócio-assistencial pago pelo INSS] que ele tinha direito. Sem convênio, aguarda uma cirurgia, mas ainda nem está na fila do Sus (Sistema Único de Saúde).
Heliópolis
A comunidade da zona sul da capital paulista tem 220 mil moradores e cerca de 30 mil famílias estão cadastradas na Unas. No entanto, hoje a distribuição de doações atende outros critérios, como necessidade, os que estão sem gás de cozinha, desempregados, idosos, quem tem mais filhos. “Tá difícil, sabe? A necessidade é muita. São as que estão no perrengue mesmo”, explica a líder comunitária.
Outro agravante é que muitas famílias que receberam o Auxílio Emergencial na pandemia hoje ainda não conseguiram a aprovação para o benefício. Segundo Antônia Cleide, são muitas famílias no desespero: “Esperam até cinco meses para análise do cadastro. Todos os dias vêm, no mínimo, quatro pessoas para ir no Cras [Centro de Referência de Assistência Social]. Tento conseguir também via Conselho Tutelar”.
Maria das Graças Rodrigues Gomes Viana está desempregada. Ela mora com a filha de 30 anos. As duas fazem bicos e só veem os gastos subir.
“Queria me aposentar para não depender de ninguém. Os bicos acabaram na pandemia. Faço faxina a cada 15 dias em uma casa por R$ 240. Também passo roupa por R$ 100. Eu trabalhava na reciclagem, mas fiquei doente. Minha filha está entregando currículo e faz bico com caça-níquel. Tenho 58 anos e o povo já olha pro cabelo branco”, pontua.
A casa é própria, mas só tem uma geladeira e uma máquina. “Vamos no mercado pechinchar, não dá pra fazer despesa. O quilo do feijão está R$ 10, o sabão em pó quase R$ 30. Meus cartões estão parados. Virou uma bola de neve e estou renegociando, uma hora nós saímos disso”, acredita.
Paraisópolis
De acordo com a pesquisa da Penssan, há um estado emergencial de fome no país. Hoje cerca de 125,2 milhões de brasileiros vivem com algum grau de insegurança alimentar, o que representa 58,7% da população.
Na segunda maior favela de São Paulo, os moradores de Paraisópolis fazem filas em pontos de distribuição de comida. Antes eram distribuídas 3.000 marmitas ao dia, agora, no máximo, 300. Na comunidade, eram 750 cestas entregues diariamente, e hoje 200, ao todo, no mês.
Para o presidente do G10 Favelas, Gilson Rodrigues, a periferia foi a mais afetada pela pandemia. “O morador de comunidade é o primeiro a ter o emprego cortado, e o último a voltar para o mercado de trabalho. Nunca existiu home office dentro da favela. O que existe é fome e falta de investimento”, destaca.
Segundo ele, até 10.000 marmitas chegaram a ser entregues no auge. “Caiu muito a doação. Já estamos envergonhados porque quem ajuda são as mesmas pessoas. A entrega é por ordem de chegada. Pode ser que alguns não consigam porque a comida acaba e a fila continua”, ressalta o líder comunitário.
As marmitas são feitas por voluntários com doações. Elas têm arroz, feijão, ovo, às vezes carne, e legumes. Mulheres com crianças e idosos são maioria na fila. Além dos alimentos, é preciso ter gás de cozinha, e o botijão chega a custar R$ 150 na comunidade.
Em Paraisópolis, moram 120 mil pessoas. Segundo estimativa do G10 Favelas, até 20% da comunidade está passando dificuldades financeiras ou insegurança alimentar. Gilson complementa: “É a mão-de-obra de menos escolaridade e são os que sentem os primeiros impactos da inflação, desemprego e queda no salário. Para combater a fome, a melhor forma é dinheiro no bolso”.
Cada família tem direito a uma marmita e é preciso ficar na fila para receber a doação
REPRODUÇÃO/ G10 FAVELAS
Empreendedorismo
No G10 Favelas, que atualmente representa o maior bloco de empreendedores sociais dentro de comunidades, ações foram estruturadas para impulsionar o número de negócios nessas regiões, o que gera renda aos moradores. Empresas já movimentam R$ 8 bilhões ao ano nas favelas em que atuam.
De acordo com Gilson Rodrigues, são 18 iniciativas de impacto social, como formação em cursos de costura, moda, beleza e logística, que pretendem ajudar a população a empreender e não ficar parada.
A fome é a expressão mais trágica do empobrecimento de grande parcela da população
NILSON DE PAULA, PESQUISADOR DA PENSANN
A entidade tem hoje 4.000 presidentes de rua, que são moradores voluntários das comunidades que cuidam de até 50 famílias e são responsáveis por atender as demandas nas favelas.
“Paraisópolis é o retrato do Brasil, mas com um agravante: a localização. Os moradores do Morumbi [bairro vizinho, em área nobre] reclamam dos pancadões, da violência, e não nos ajudam”, revela o presidente do G10.
Pernambuco
O número de pessoas com renda domiciliar per capita de até R$ 497 mensais atingiu 62,9 milhões de brasileiros em 2021, cerca de 30% da população total do país. A pesquisa Mapa da Nova Pobreza, do FGV Social (Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas), indica que são 9,6 milhões de pobres a mais em relação a 2019, o equivalente à população de Portugal.
Na pandemia, o maior aumento foi em Pernambuco: de 8,14 pontos percentuais. As únicas quedas de pobreza ocorreram em Tocantins (0,95 ponto percentual) e Piauí (0,03 ponto percentual).
“Se a fome é devastadora no cotidiano, imagine dentro de um cenário de tragédia”, enfatizou o presidente do G10 Favelas.
Em Pernambuco, a pobreza se agravou mais com as chuvas que castigaram a região. Aldenice é moradora da comunidade Areal e teve de sair de casa e ir para o interior do estado ficar com a mãe após a enchente.
De barco, o marido dela resgatou moradores porque nem os bombeiros chegaram na comunidade, que fica à beira do rio Capibaribe.
“Minha diabetes está em 530. Minhas coisas molharam tudo. Essa enchente acabou comigo. Estou sem vasilha pra cozinhar. As cadeiras a água levou. Ganhei fogão porque o outro ficou boiando. Eu não tenho condições de comprar outro sofá. Já é a segunda enchente, mas como essa não teve não”, conta a moradora.
Para o coordenador do G10 Favelas em Pernambuco e presidente do Instituto Casa Amarela Social, Fausto Filho, “a tragédia só veio para escancarar e potencializar a miséria que já estávamos vivendo. Junto a isso, vieram as perdas e as mortes”.
A estimativa dele é que 80 mil famílias foram afetadas e cerca de 40% desse total ainda está tentando reconstruir as vidas.
“Faz uma semana que não recebemos doações. Acaba a comoção. As empresas aqui não estão estão abertas a doação, como em São Paulo. Precisamos de cesta básica mas também de móveis. A população que mora perto de rios, córregos e encostas é a que mais sofre por causa das chuvas”, relata o coordenador.
A entrega dos kits com alimentos, roupas e materiais de higiene é feita sem grande alarde porque não há itens suficientes para todos e já houve até registro de briga. À noite, são entregues as senhas para retirada.
“O pessoal do Alto Santa Isabel em Casa Amarela [sexta maior favela do Brasil] está chateado comigo porque preciso escolher quem está com mais dificuldade. Chegam as doações e eles não entendem porque não entrego para os moradores daqui. Vem gente vítimas das chuvas e vem os que perderam renda na pandemia”, afirma Fausto Filho.
Apesar do cenário adverso, o coordenador do G10 Favelas acredita que a solução para o enfrentamento da pobreza está dentro das comunidades.
“As favelas movimentam mais de R$ 7 bilhões e são dados que a população não sabe. Vamos potencializar isso. Não é passe de mágica, vamos criar negócios. Se vende um bolo gostoso, vamos pensar em um negócio. Se tem dinheiro nas favelas, vamos prosperar. A solução não vai vir de fora para dentro”, finaliza.
Fonte: R7