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Ele é o único habitante de um vilarejo abandonado na Itália: ‘Minha ilha’

Ele nasceu, cresceu e espera passar seus últimos dias na cidade que não existe mais. Para quem o vê pela primeira vez, Salci é só um vilarejo abandonado.

Para o italiano Marcello Marchini, com os pés que não arredam de lá, é a sua “ilha feliz”. Salci é um pontinho no mapa. Cerca de quinze quilômetros a separam de Città della Pieve, cidade situada da província de Perugia na região da Úmbria, conhecida como o “coração verde da Itália”.

É a terra que com suas paisagens e misticismo inspirou artistas como Giotto e conquistou personalidades como aquele que se tornou o padroeiro da Itália, São Francisco de Assis.

O burgo de Salci só tem um habitante: Marcello.

Com seus becos medievais, Città della Pieve é a terra natal do pintor Perugino, um dos expoentes do Renascimento, e a cidade escolhida por um dos líderes políticos italianos mais influentes na arena do poder internacional: o ex-presidente da Banca Central Europeia e premiê italiano, Mario Draghi, que ali possui uma casa.

Marcello nunca participou de uma mesa de negociações. É um homem concreto. Nascido em 1947, hoje ele é mecânico aposentado que reage como pode àquela que ele considera uma injustiça: a morte daquele que já foi um próspero ducado.

Salci já teve 1260 habitantes.

Foi conquistada pela poderosa família Bandini (originária de Florença) e, prosperando rapidamente, em 1568 foi declarada capital de seu ducado e feudo pontifício pelo papa Pio 5º.

Sem herdeiros, a propriedade da família Bandini foi transferida para o sobrinho do papa, Michele Bonelli, que se ocupou de Salci até o período de unificação do estado italiano. Em 1886, Salci foi cedida à Vittoria di Mirafiori, filha do primeiro rei da Itália, Vittorio Emanuele II di Savoia.

Para imaginar a vida em Salci, repercorra mentalmente as cenas de um dos filmes mais famosos de Bernardo Bertolucci: “1900”. Apesar de gravado em outra região, na Emilia-Romagna, o contexto é bem similar, aquele de uma Itália agrícola, dominada pelo fascismo, em um clima de tensão entre patrões e camponeses.

Salci chegou a ter 1.260 habitantes. Era um vilarejo fortificado e totalmente autônomo, com uma própria agência de correios, lojas, laboratórios de artesãos, farmácia e até uma igreja, que existe até hoje. Na época, principalmente na Itália central, era comum o sistema chamado de mezzadria, ou seja, as terras eram administradas por um patrão, mas divididas em lotes entre os camponeses, obrigados a compartilhar geralmente metade de sua colheita e lucros.

Marcello Marchini não pensa em sair de lá, onde chama de sua ‘ilha feliz’ Imagem: Alfredo Santucci.

Salci também é a cidade natal de Achille Piazzai, engenheiro naval que idealizou o transatlântico italiano Rex.

Assim como acontece em outros vilarejos da Itália, onde a população idosa é cada vez mais numerosa e os jovens abandonam os pequenos centros em busca de mais oportunidades, na década de 70 o número de habitantes de Salci começou a diminuir drasticamente.

Um de seus últimos moradores, o pároco Pietro Calzoni, faleceu em 1998 e o complexo residencial que formava o vilarejo de Salci foi vendido a uma empresa que tentou, em vão, de transformá-la em uma estrutura para a hospitalidade. Os poucos habitantes que até então reivindicavam o direito de permanecer em Salci foram deslocados.

Marcello, assim como outros, foi obrigado a se mudar para Ponticelli, a cerca de dez quilômetros de Salci, mas nem por isso se deu por vencido.

Vilarejo é um dos muitos da Itália que sente abandondo da população mais jovem Imagem: Alfredo Santucci.

Na casa do padre

Capítulo encerrado? Muito pelo contrário. Foi criado um comitê chamado Salviamo Salci, que conta inclusive com o apoio de um famoso ator cômico na Itália, o romano Carlo Verdone. Pessoas que gostariam que sua igreja pudesse receber fiéis novamente. Que seu poço voltasse a funcionar e sua fonte jorrasse água.

Marcello conta que a iniciativa provocou um braço de ferro entre seu proprietário e seus antigos moradores. Ele pediu à cúria local o direito de morar na casa antes ocupada pelo pároco de Salci e apesar de cartazes que avisam sobre o perigo de desmoronamento e as barreiras metálicas que tentam impedir o acesso ao vilarejo, Marcello preside a sua cidade natal e não a abandona.

Quem não conhece a sua história pode pensar que ele é o vigia da cidade, mas na verdade o que ele protege é mais do que os poucos quilômetros de terra e o que restou de Salci. Ele protege a memória e personifica a resistência de quem não aceita a ideia que onde existia vida agora prevalece o silêncio.

Me abre as portas de sua casa com a gentileza típica de quem aprecia receber hóspedes. Prepara o café que libera o seu aroma no ar. Cultiva uma horta ali onde a terra era pronta a ser considerada infértil e mantém até um barco em seu próprio jardim.

A Úmbria é uma região da Itália não banhada pelo mar, mas assim como o beija-flor desafia a natureza e consegue ficar suspenso no ar, quem disse que um homem só não pode tentar mudar o rumo das coisas?

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