‘Facções nunca dormem’: a guerra silenciosa por trás de ataques no Rio Grande do Norte
A onda de crimes em cidades do Rio Grande do Norte é mais um capítulo da recorrente violência empreendida pelas facções criminosas que atuam no Estado nordestino.
Há pelo menos dez anos, dois desses grupos, o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Sindicato do Crime, promovem um conflito bélico e mortífero pelo controle de territórios e de atividades criminosas, uma “guerra silenciosa” que já vitimou milhares de jovens potiguares.
Nesta quinta-feira (16/3), a população viveu mais um dia de violência nas ruas, o terceiro consecutivo. Atentados foram registrados em 39 cidades nos últimos três dias.
Ônibus e caminhões foram incendiados. Em Natal, a circulação de ônibus e trens foi suspensa. O atendimento da coleta de lixo e de unidades de saúde foi interrompido e universidades, escolas e comerciantes fecharam as portas com medo de ataques.
A recente onda de violência fez com que a governadora Fátima Bezerra (PT) pedisse auxílio da Força Nacional, que enviou 180 profissionais ao Estado. Segundo a Polícia Militar, 68 pessoas foram presas e um adolescente foi apreendido até a noite dessa quinta-feira, todos sob suspeita de terem participado dos atentados.
Segundo a imprensa local, os ataques teriam sido ordenados por membros do Sindicato do Crime, quadrilha local presente em bairros periféricos dos principais municípios do RN.
Os crimes teriam sido motivados pelas más condições dos presídios do Estado. Em vistorias a cinco prisões do Estado, o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), órgão ligado ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, encontrou evidências de torturas físicas e psicológicas, falta de alimentação, desassistência em saúde e superlotação, entre outras violações dos direitos, conforme noticiado pelo portal g1.
Especula-se que as duas quadrilhas rivais, Sindicato e PCC, teriam dado uma trégua no conflito para reivindicar melhorias no sistema carcerário por meio de ataques violentos à sociedade civil e serviços públicos.
Por sua vez, a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (Sesed) negou que a motivação seja essa. A pasta afirma que os ataques são uma retaliação a ações policiais de combate ao tráfico e ao crime organizado.
“Acreditamos que ações policiais anteriores, onde houve o enfrentamento da segurança pública a infratores e apreensão de grande quantidade de drogas e armas, inquietaram a delinquência a enfrentar o sistema de segurança pública”, disse o secretário da pasta, Francisco Araújo, na terça-feira.
Por outro lado, quem estuda e trabalha em áreas relacionadas à segurança pública no RN acredita que a onda recente escancara para a sociedade civil um conflito violento e cotidiano travado dentro dos presídios e em ruas de bairros de diversas cidades.
“As facções criminosas do Rio Grande do Norte nunca dormem, nunca estiveram sob controle. O que vimos nesses últimos dias é reflexo de uma guerra que acontece há anos, de maneira silenciosa. São jovens que estão matando e morrendo por causa de briga de facção”, diz Ítalo Moreira, promotor criminal que desde 2003 atua em casos de homicídios em Mossoró , a segunda maior cidade do RN.
Segundo o Monitor da Violência, índice compilado pelo g1, Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) e Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o RN registrou 1,1 mil assassinatos no ano passado – ligeira queda de 5% em comparação com 2021.
A maior parte dessas mortes, no entanto, não é solucionada pela polícia potiguar. Ou seja, as investigações não conseguem apontar quem foram os autores dos crimes.
Segundo o “Painel de Produtividade do Departamento de Homicídios”, dos 810 inquéritos policiais de assassinatos sob investigação desse setor da Polícia Civil, apenas 22,8% foram solucionados no ano passado – ou seja, apenas um em cada cinco homicídios foi esclarecido pela polícia do RN.
Em 2010, o índice era maior: 62% dos casos foram solucionados naquele ano, mas esse número foi diminuindo desde então.
“Eu não diria que a culpa é dos delegados e policiais, e sim da piora da estrutura para realizar as investigações. Faltam pessoal e ferramentas. Muitos casos são arquivados. Em outros, peço absolvição do réu por falta de provas, mesmo tendo certeza de que ele é culpado. Um júri não pode condenar uma pessoa se a investigação não provou que ela é culpada”, diz o promotor Ítalo Moreira.
“Então, a impunidade acaba fomentando a violência, porque a pessoa mata e não é punida”, diz.
Mas quem são as vítimas?
Um estudo de 2018 do Observatório da Violência do Rio Grande do Norte (Obvio) tentou responder essa pergunta.
Entre 2011 e 2018, cerca de 93% delas eram homens, 85% eram pretas ou pardas, 49% tinham entre 18 e 29 anos. Além disso, 31% não tinham sequer completado o ensino fundamental, 54% não exerciam atividade remunerada e 39% ganhavam até dois salários mínimos.