O que é a moeda comum que Brasil e Argentina negociam e por que isso não é o fim do real
A possibilidade de criação de uma moeda comum de Brasil e Argentina para transações comerciais virou um dos principais assuntos da visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a Buenos Aires; a ideia, no entanto, não é substituir as divisas nacionais, como ocorreu no caso do euro.
A possibilidade de criação de uma moeda comum de Brasil e Argentina para transações comerciais virou um dos principais assuntos da visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao país vizinho — a sua primeira viagem internacional desde que tomou posse no começo do mês.
“Decidimos avançar nas discussões sobre uma moeda sul-americana comum, que possa ser usada tanto para os fluxos financeiros como comerciais, reduzindo os custos operacionais e nossa vulnerabilidade externa”, afirma uma carta conjunta divulgada antes do encontro entre Lula e o presidente argentino, Alberto Fernández.
Em discurso durante o encontro, Lula reforçou a ideia. “Por que não tentar criar uma moeda comum como se tentou entre os países dos Brics? Acho que, com o tempo, isso vai acontecer. E acho que é necessário que aconteça.”
Detalhes sobre o que será discutido — incluindo uma proposta brasileira de batizar a moeda de “sur” (sul) — foram publicados pelo jornal britânico Financial Times, que entrevistou o ministro argentino da Economia, Sergio Massa.
Muitas pessoas ao saber da notícia entenderam que Brasil e Argentina poderiam criar algo como o euro — uma moeda única entre as duas maiores economias da América do Sul que substituiria tanto o peso argentino como o real brasileiro.
No entanto, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, desmentiu a notícia ao desembarcar em Buenos Aires no domingo.
A moeda comum que os dois países estudam criar no futuro serviria apenas para facilitar transações comerciais sem a necessidade de recorrer ao dólar. Ela seria muito diferente do euro — que é uma moeda única que substituiu moedas nacionais em 20 dos 27 países da União Europeia.
Na verdade, a proposta em estudo entre Brasil e Argentina mais parece uma moeda virtual — que não substituiria as moedas nacionais.
Moeda ‘comum’
O dólar americano é hoje fundamental para a maioria das operações financeiras e comerciais no mundo. A moeda foi adotada como a reserva global de valor em 1944, dentro do Acordo de Bretton Woods.
Isso significa que muitos bancos centrais no mundo todo mantêm parte da riqueza de seus governos em dólares. A cotação das moedas nacionais em relação ao dólar é fundamental para determinar o poder econômico de cada país.
Ao longo dos anos, houve esforços para se abandonar o dólar como principal moeda mundial. A China promove tratados bilaterais com diversos países para que as trocas comerciais sejam realizadas em iuan e na moeda nacional do país.
Em abril do ano passado, Haddad havia publicado junto com o economista Gabriel Galípolo um artigo no jornal Folha de S. Paulo em que propunha uma moeda comum não só para Brasil e Arentina como para toda a América do Sul.
Haddad e Galípolo defendem que a criação da moeda poderia ajudar países a protegerem sua soberania de possíveis sanções impostas por potências estrangeiras, sobretudo dos EUA, que estão no “topo da hierarquia mundial”, por terem o privilégio de poder emitir a moeda internacional.
“Os EUA e a Europa se valeram do poder de suas moedas para impor severas sanções contra a Rússia, confiscando reservas internacionais e excluindo-a do sistema de pagamentos internacionais (Swift)”, escrevem.
“A utilização do poder da moeda em âmbito internacional renova o debate sobre sua relação com a soberania e a capacidade de autodeterminação dos povos, em especial para países com moedas consideradas não conversíveis. Por não serem aceitas como meio de pagamento e reserva de valor no mercado internacional, seus gestores estão mais sujeitos às limitações impostas pela volatilidade do mercado financeiro internacional.”
No artigo, eles reconhecem que criar uma moeda como o euro seria difícil dada as “heterogeneidades estruturais e macroeconômicas” dos países sul-americanos.
No caso de Brasil e Argentina, as economias vivem realidades completamente distintas — o Brasil possui inflação anual na casa de dois dígitos enquanto na Argentina os preços praticamente dobraram em 2022.
Segundo a proposta, a nova moeda seria usada para fluxos comerciais e financeiros entre países da região — mas Haddad e Galípolo deixam claro que todos os países teriam liberdade para adotá-la domesticamente ou manter suas moedas. Ou seja, tanto Brasil como Argentina poderiam manter o real e o peso, respectivamente.
Eles propõem a criação de um Banco Central Sul-Americano que seria responsável pela emissão da moeda. Esse banco central seria criado com contribuições de cada governo, que seriam proporcionais às suas participações no comércio regional.
“A capitalização seria feita com reservas internacionais dos países e/ou com uma taxa sobre as exportações dos países para fora da região. A nova moeda poderia ser utilizada tanto para fluxos comerciais quanto financeiros entre países da região.”
Eles citam a “experiência monetária brasileira com o êxito da URV”, em referência à Unidade Real de Valor, que foi usada como moeda de transição para implementação do real.
O artigo foi escrito pelos autores em abril de 2022, meses antes da eleição de Lula e a indicação de Haddad para o ministério da Fazenda.
Ao chegar em Buenos Aires, Haddad disse a jornalistas, segundo o jornal Valor Econômico: “Estive com ele [Massa] mais de uma vez conversando e ele está querendo incrementar o comércio que está caindo muito. [A situação do comércio] está muito ruim, e o problema é exatamente a divisa, né? Isso que a gente está quebrando a cabeça para encontrar uma solução. Alguma coisa em comum, alguma coisa que permita a gente incrementar o comércio porque a Argentina é um dos países que compram manufaturados do Brasil e a nossa exportação pra cá está caindo.”
Fonte: g1