Ucranianos desafiam Rússia ao abraçarem “vida normal” em meio à guerra
Em meio à guerra, a população tenta seguir com atividades cotidianas pré-invasão, como trabalhar, passear com seus cachorros e brincar com seus filhos no parque
Cinco meses após o início da guerra, muitos ucranianos estão adotando uma vida normal. As pessoas ainda vão trabalhar, passear com seus cachorros e brincar com seus filhos no parque
Nas margens do rio Dnieper, os pais tomam sol na praia enquanto seus filhos se divertem na água gelada e refrescante.
Uma garota dança, torcendo e girando na areia enquanto um artista de rua no calçadão bate seu tambor ao ritmo de uma música pop.
Com bares e cafés cheios de atividade, a vibração é semelhante a de inúmeros pontos turísticos de verão europeus.
No entanto, este seria um lugar estranho para férias. Estes são pequenos retratos da vida na cidade ucraniana de Zaporizhzhia, a apenas 30 quilômetros da linha de frente da guerra.
É um contraste gritante e desconcertante com as cenas que se presenciava em uma visita a esta cidade há três meses.
Naquela época, a invasão à Ucrânia completava dois meses; a maioria dos negócios da cidade estava fechada e grande parte da população estava fugindo.
Já se passou o tempo em que os comboios de carros fugiam para o oeste da Ucrânia, muitos com o aviso “crianças” colado nas janelas.
Em vez disso, apesar da proximidade das linhas de frente e da ameaça sempre presente de fogo de artilharia de longo alcance, a vida neste país pode parecer enganosamente pacífica.
Cinco meses após o início da guerra, muitos ucranianos estão adotando uma vida normal. As pessoas ainda vão trabalhar, passear com seus cachorros e brincar com seus filhos no parque.
“Nós nos acostumamos com isso. E é horrível termos nos acostumado”, desabafou a bailarina Katryna Kalchenko enquanto se preparava para uma apresentação na casa de ópera em Odesa.
Nesta cidade portuária do Mar Negro, há aquela chocante dissonância entre a loucura da guerra e a mundanidade da vida cotidiana.
Odesa já foi conhecida como a “Pérola do Mar Negro” da Ucrânia, um local de férias popular entre poetas, escritores e músicos.
Ainda hoje, mantém muito de seu charme, embora sua tranquilidade seja ocasionalmente prejudicada por ataques russos — como os dois mísseis de cruzeiro Kalibr que atingiram a cidade poucas horas depois que Moscou assinou um acordo de exportação de grãos com Kyiv intermediado pelas Organização das Nações Unidas (ONU).
A bailarina Kalchenko foi forçada a fazer seu aquecimento no porão da casa de ópera, porque uma sirene de ataque aéreo havia enviado toda a orquestra e o grupo de dança correndo para um abrigo apenas meia hora antes do espetáculo.
Depois, Kalchenko e seus colegas dançarinos surgiram para o primeiro ato algum tempo depois com equilíbrio e serenidade suficientes para deixar o público fascinado — até que a ameaça de outro ataque com mísseis russos forçou o encerramento prematuro do show.
Uma vitória da moral
É como se, cinco meses depois do início do conflito, muitos ucranianos tivessem aceitado sua nova realidade.
Isso é em parte um reflexo da confiança naqueles que lutam em seus nomes.
Os ucranianos estão muito orgulhosos de como seus soldados derrotaram a tentativa de blitzkrieg russa — tática de guerra que consiste em ataques rápidos e de surpresa — em Kyiv, no norte do país, na primavera.
Muitos agora esperam que haja mais sucessos enquanto suas forças travam uma guerra de desgaste nas frentes leste e sul, onde esperam recuperar cidades e vilas perdidas para os exércitos do presidente russo Vladimir Putin.
É uma luta que cobra um preço alto. Um conselheiro do presidente ucraniano, Volodmyr Zelensky, disse que, em certo momento, o país estava perdendo até 200 soldados por dia.
Está claro, porém, que entre esses bravos defensores há uma grande vontade de suportar o que for preciso.
Um exemplo é Tome Serhii Tamarin.
Em março, ele havia acabado de sair de um hospital militar e estava se recuperando de uma lesão na coluna e costelas quebradas enquanto comandava um batalhão de Defesa Territorial de cerca de 400 soldados, lutando a noroeste de Kyiv.
“Não é tão assustador morrer, é muito mais assustador perder”, afirmou ele na época. Poucos dias após a internação, ele havia retornado ao front.
Agora, ele está de volta ao hospital, desta vez por ferimentos sofridos como operador das forças especiais lutando no sul.
Existe uma palavra em inglês, ele perguntou, para quando algo explode perto de sua cabeça?
Um projétil vindo de um tanque pousou perto do soldado, o deixando fortemente contundido, e agora ele tem dificuldade em pensar direito, explicou ele.
Mas Tamarin insistiu que estava se sentindo bem o suficiente para voltar à luta.
“Acho que em alguns dias eles devem me enviar de volta ao meu pelotão”, disse Tamarin.
Desafio
A aceitação da nova realidade da Ucrânia não é apenas uma questão de confiança em homens como Tamarin. É levado como um desafio também.
Os soldados descrevem a existência da guerra como uma invasão ordenada por um presidente russo que questiona o direito da Ucrânia de existir como um país independente.
“Eles vieram para capturar nosso território”, disse o tenente sênior Andrii Pidlisnyi, que comanda uma companhia de cerca de 100 homens na região de Mykolaiv.
“Para, talvez, matar meus pais, destruir minha casa, morar aqui e dizer que era historicamente um território russo.”
Os civis muitas vezes expressam sua raiva usando a retórica russa — que está “libertando” os ucranianos de seu próprio governo democraticamente eleito — e jogando de volta na cara do Kremlin.
“Obrigada por me ‘salvar’ da minha casa, da minha família, do meu filho que está em outro país e de quem sinto falta todos os dias”, ironizou Anastasia Bannikova, outra bailarina que estava no abrigo antiaéreo do porão da ópera de Odesa.
Como tantos outros, nos primeiros dias da guerra, Bannikova fugiu da Ucrânia. Agora, ela voltou a trabalhar em Odesa — embora tenha deixado sua filha na relativa segurança da Moldávia.
Escolhendo a vida
Quase todo mundo com quem você fala na Ucrânia perdeu alguma coisa devido à guerra. Muitos enterraram entes queridos. Outros viram seus negócios falir, suas casas destruídas e futuros revirados.
Como um agricultor planta as colheitas do próximo ano ou um estudante do ensino médio considera se matricular na universidade enquanto esta guerra continua sem um fim à vista?
Uma resposta encontrada por muitos, em meio a toda a morte e destruição, é que continuar vivendo uma vida o mais normal possível é a maior vitória que existe.
Todos os ucranianos entrevistados aceitaram suas dificuldades com um estoicismo silencioso; raramente se queixavam ou chafurdavam na vitimização.
Sergei, um capitão de navio de carga que não pode ir para o mar desde que a marinha russa bloqueou os portos da Ucrânia, disse que foi criado com as histórias de sacrifícios dos seus avós que sofreram durante a Segunda Guerra Mundial.
“Agora é a nossa vez”, afirmou ele.
Fonte: CNN Brasil