Vila Cruzeiro: o que se sabe sobre operação policial que deixou mais de 20 mortos no Rio
Mais de 20 pessoas morreram após uma operação policial na terça-feira (24/5) na Vila Cruzeiro, parte do Complexo da Penha, na zona norte do Rio de Janeiro.
Diversos veículos da imprensa estão contabilizando um total de 25 mortos — o número é a soma de dados confirmados por diferentes fontes. Segundo a Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro, 23 pessoas morreram no principal hospital para o qual feridos foram levados, o Hospital Estadual Getúlio Vargas.
Além destes 23 óbitos, a direção da Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do Alemão confirmou que o corpo de um menor foi levado ao local. A cabeleireira Gabrielle Ferreira da Cunha também foi alvejada e morta em uma comunidade próxima à Vila Cruzeiro. Com isso, o número de vítimas da operação chega a 25 pessoas.
Segundo a secretaria estadual, quatro pacientes seguem internados no hospital Getúlio Vargas — um em estado grave e três estáveis.
A operação foi realizada pelo Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) da Polícia Militar, pela Polícia Federal (PF) e pela Polícia Rodoviária Federal (PRF).
Segundo a PMERJ, “a ação teve por objetivo localizar e prender lideranças criminosas que estão escondidas na comunidade, inclusive criminosos oriundos de outros Estados do país (Amazonas, Alagoas, Pará entre outros)”.
“As equipes do BOPE e da PRF se preparavam para a incursão quando criminosos começaram a fazer disparos de arma de fogo na parte alta da comunidade”, continua a nota da polícia.
A PRF afirmou em nota que participou da ação porque as “lideranças criminosas escondidas na comunidade” também “atuam em crimes nas rodovias federais”.
Na noite de terça-feira, o presidente Jair Bolsonaro parabenizou no Twitter “os guerreiros do BOPE” pela ação.
O Complexo da Penha, onde fica a Vila Cruzeiro, abriga cerca de 70 mil famílias, segundo a Federação de Favelas do Rio de Janeiro (Faferj). Escolas e unidades de saúde na região ficaram fechadas durante o dia.
Moradora de Vila Cruzeiro e criadora da página “Vila Cruzeiro – RJ”, que tem mais de 140 mil seguidores no Facebook, Cláudia Sacramento conta que a passagem de algumas linhas de ônibus foi interrompida e muitas pessoas não foram trabalhar, por precaução ou por dificuldade no transporte.
Ela relata ter escutado tiros e fogos desde 3h40 da madrugada de terça até às 18h, aproximadamente, e que confrontos ocorreram em várias partes da comunidade, principalmente perto de áreas de mata.
“As ruas estão vazias, o pessoal ainda está com medo e andando com muito cuidado. Depois de tudo isso, a gente fica apreensivo de acontecer de novo (mais confrontos)”, disse Sacramento em entrevista à BBC News Brasil por telefone, por volta de 19h30 de terça-feira.
“Dentro da favela não tem só gente armada, tem gente que trabalha, que às vezes deixa os filhos em casa para trabalhar. Aqui dentro não tem pé de drogas, não tem pé de armas, aqui é um enxuga gelo que só prejudica quem não tem nada a ver com isso”, lamenta a moradora.
Promotorias anunciam investigações
O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ) e o Ministério Público Federal (MPF) anunciaram a abertura de procedimentos de investigação para apurar as circunstâncias da operação.
O MPRJ afirmou que vai investigar a “licitude de cada uma das ações letais” e pediu a apreensão de todas as armas usadas na ação para perícia.
Já o MPF anunciou que vai “apurar as condutas, eventuais violações a dispositivos legais, as participações e responsabilidades individualizadas de agentes policiais federais durante operação conjunta”.
“Em 11 de fevereiro deste ano, no mesmo lugar, houve oito vítimas fatais em operação com participação da PRF. O Brasil é signatário de tratados e acordos internacionais que nos obrigam a investigar e punir violações de direitos humanos. E 21 mortos, até agora, em menos de 3 meses, não podem ser investigados como se fossem simples saldo de operações policiais”, afirmou em nota o procurador da República e titular do Núcleo de Controle Externo da Atividade Policial no Rio de Janeiro, Eduardo Benones.
Segundo o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni) da Universidade Federal Fluminense (UFF), de 2007 a 2021, foram realizadas 17.929 operações policiais em favelas na região metropolitana do Rio. Destas, 593 terminaram em chacinas, com um total de 2.374 mortos. O maior número de mortes em uma única ação ocorreu no Jacarezinho, também na zona norte da cidade do Rio, em maio do ano passado: 28 pessoas morreram.
De acordo com levantamento do grupo de estudos, a presença de unidades especiais, como o Bope ou a Coordenadoria de Operações e Recursos Especiais (Core), da Polícia Civil, torna as operações mais propensas a levarem a chacinas.
Em fevereiro deste ano, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) determinou uma série de medidas a serem cumpridas pelo Estado do Rio de Janeiro em operações policiais, como a instalação de câmeras nas fardas dos policiais dentro de 180 dias e um processo mais detalhado e exigente para a realização de mandados de busca e apreensão.
Os ministros do STF também decidiram que o uso da força letal por agentes do Estado só deve ocorrer depois de esgotadas todas as alternativas e em “situações necessárias para a proteção da vida ou a prevenção de dano sério, decorrente de ameaça concreta e iminente”.
A deliberação fez parte do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, que durante a pandemia de coronavírus levou à limitação, por meio de liminar, de operações policiais em meio à situação de emergência sanitária. A liminar foi concedida pelo ministro Edson Fachin, relator da ADPF. Nesta quarta-feira (25), o STF informou que Fachin, em conversa com o procurador de Justiça do Rio de Janeiro, Luciano de Oliveira Mattos de Souza, manifestou “muita preocupação com a notícia de mais uma ação policial com índice tão alto de letalidade” — referindo-se ao ocorrido na Vila Cruzeiro.
A instalação de câmeras nas fardas, uma medida que já é adotada em alguns locais do país com o objetivo de monitorar as ações policiais, estava prevista para começar no Rio em 16 de maio. Entretanto, de acordo com a PMERJ, a empresa contratada para fornecer os equipamentos, a L8, pediu adiamento da entrega.
“O Estado iniciou o processo de aplicação de penalidade (contra a empresa contratada). Para o Governo do Estado é fundamental que esse programa funcione em sua totalidade para que seja garantida a transparência nas ações policiais”, escreveu a polícia em nota.
Em uma primeira etapa, as câmeras serão usadas por 2.190 policiais militares dos 10 batalhões da capital.
‘Sitiadas entre o crime organizado e a violência do Estado’
A Faferj (Federação de Favelas do Estado do Rio de Janeiro) chama o episódio de “chacina do complexo da Penha” e afirma que a política de segurança pública do governador Cláudio Castro é “única e exclusivamente de extermínio da favela”.
“Uma chacina eleitoreira com justificativas que foram mudando ao longo do dia, conforme subia o número de mortos, escolas, hospitais e órgãos públicos fechados na região. Um filme de terror da vida real para inflamar eleitores conservadores e cidadãos contra as favelas do Rio”, afirma a entidade em nota.
A Faferj diz ainda que as “favelas do Rio estão sitiadas entre o crime organizado e a violência desenfreada do Estado” e que é “lamentável que o Estado haja com tanta violência e crueldade, sem pensar nos efeitos nocivos a toda comunidade”.
O governador Cláudio Castro usou o Twitter para se manifestar sobre o assunto.
Ele disse que “a ação conjunta seguiu todos os protocolos estabelecidos pela ADPF 635, e o Ministério Público foi devidamente comunicado”. Afirmou também que os policiais foram “atacados por bandidos fortemente armados” e que o “violento confronto culminou na morte dos criminosos.”
“Uma moradora está entre as vítimas e sua morte está sendo investigada”, disse também, referindo-se ao óbito de Gabrielle Ferreira da Cunha.
Fonte: BBC Brasil