Caso Marielle destampou o buraco da corrupção policial, diz autor de ‘Milicianos’
Na página 42 do livro-reportagem “Milicianos”, que tem no ex-policial Ronnie Lessa um de seus protagonistas, o jornalista Rafael Soares tangencia o assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes com a seguinte nota: “Até o fechamento deste livro, o mandante não havia sido identificado”.
É compreensível, afinal, a obra foi publicada em outubro do ano passado –as mortes ocorreram em março de 2018. O curioso é reparar que, menos de 30 páginas depois, Soares volta ao caso com uma menção ao ex-deputado estadual Domingos Brazão.
O contexto é um suposto “depoimento-bomba” oferecido um mês depois da morte de Marielle à polícia, que implicava como mandantes o ex-policial Orlando Curicica e o vereador Marcello Siciliano. Ficou comprovado que o depoimento era uma farsa, nas palavras do jornalista, arquitetada por Brazão, que era conselheiro do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro.
Segundo o autor, o político “tinha dois objetivos ao criar a versão fajuta”: prejudicar Siciliano, seu desafeto, e “evitar que a investigação do assassinato de Marielle respingasse nele próprio”.
Não é exatamente clarividência. Fica patente que a prisão de Brazão pela Polícia Federal no último domingo (24), suspeito de ter planejado o crime ao lado de seu irmão, o deputado federal Chiquinho Brazão, e do delegado Rivaldo Barbosa, não foi surpresa para o autor do livro. As defesas dos três detidos negam os envolvimentos de seus clientes no crime.
Mas o episódio serve para demonstrar o rigor jornalístico que permeia “Milicianos”, uma obra que toma o cuidado de se fundamentar no relato mais objetivo e criterioso possível, sem avançar sinais nem fazer inferências indevidas.
“O livro não tem nenhum off”, afirma o jornalista, hoje repórter especial do jornal O Globo, em referência a informações passadas por fontes que não querem se identificar. “Eu percebi que conseguia montar todo o quebra-cabeças só com peças documentais. Queria um livro-reportagem que expusesse todas as fontes, que não parecesse que estou tentando convencer ninguém, mas sim mostrando como é.”
O panorama que “Milicianos” traça é o do crescimento da milícia no Rio de Janeiro, com gancho em alguns de seus principais personagens –nomes como Marcos Falcon e Adriano da Nóbrega, por exemplo– e grupos organizados como o Escritório do Crime e a Liga da Justiça.
Tudo isso a partir, sobretudo, de processos judiciais e documentação da polícia e do Ministério Público, angariados em cerca de 12 anos de acervo reunido pelo autor ao longo de suas apurações.
Observador privilegiado, Soares enxerga o caso Marielle como um divisor de águas, já que finalmente “obrigou o Estado a investigar esses caras”. Isso porque quando o perfil de Lessa veio à tona, após sua prisão, o ex-policial já era tratado como lenda no submundo do crime, sem nunca ter sido alvo de processos formais por homicídio –nas palavras de Soares, era um “pistoleiro ficha limpa”.
Foi esse o gatilho inicial de “Milicianos”. As ocorrências na ficha policial de Lessa provinham, na verdade, de sua época como agente da própria Força na virada do milênio –repleta de bonificações e promoções, numa “carreira astronômica” que, segundo Soares, se baseava em “indícios claros de violações de direitos humanos”.
É uma situação parecida com a de Adriano da Nóbrega. “Eu brinco que o capitão Adriano só não era conhecido na zona sul do Rio. Ele impactava a vida de milhões de pessoas na cidade”, afirma o repórter. “Eu ouvi o nome do Adriano nas minhas apurações desde 2016, mas só consegui escrever o nome dele no jornal pela primeira vez em 2019.”
Isso porque não havia como corroborar as acusações contra ele com declarações sólidas, naquele ambiente de intimidação, ou documentos oficiais, já que nenhuma investigação ia para a frente, sempre com um forte cheiro de sabotagem interna.
E é aqui que o jornalista aponta um dos principais legados do terremoto midiático provocado pelas mortes de Marielle e Anderson. “A operação contra o Ronnie Lessa permitiu jogar luz sobre esse buraco do Rio de Janeiro que estava fechado.”
Após ser preso sob suspeição de ter participado da morte de Marielle, Lessa decidiu fazer uma delação. Em depoimento, confessou ter executado o crime e apontou os irmãos Brazão como mandantes, além de ter indicado a participação do delegado Rivaldo.
Outro potencial legado do caso, segundo Soares, pode ser o desmantelamento do esquema de corrupção policial no Rio. “Ficou claro que Lessa não apertou esse gatilho sozinho. Ao longo dos dez anos anteriores, a Delegacia de Homicídios [que foi chefiada por Rivaldo] tornou possível que matadores de aluguel cometessem crimes bárbaros sem ser incomodados.”
“Hoje conseguimos dizer, com base na apuração da Polícia Federal, que a impunidade e a corrupção policial levaram ao caso Marielle. Pelo menos isso está comprovado”.
O que não quer dizer que os próximos avanços serão simples. Uma frase que Soares reforça diversas vezes ao longo do livro é que os milicianos foram treinados pelo Estado para ser bons criminosos –se aproveitando tanto do acesso a informações privilegiadas como de métodos para despistar investigações.
Isso ficou claro no caso Marielle, no qual os suspeitos tomaram precauções bem calculadas para evitar o rastreamento do carro, da arma e dos celulares usados no crime.
“Já faz muitos anos, desde a década de 1960, que a classe policial circula nas organizações criminosas que exploram o território do Rio de Janeiro”, diz Soares, citando o modelo geográfico “muito bem estruturado” pelos patrões do jogo do bicho, uma narrativa familiar a quem tenha assistido à série “Vale o Escrito”, do Globoplay. “Esse modelo só foi se aprimorando.”
A narrativa que coloca policiais como “a solução” para combater “os malvados” é “uma simplificação do cenário que não ajuda”. O assassinato da vereadora é um exemplo didático dessa complexidade.
“A realidade é que a polícia também é um problema, faz parte da equação”, afirma Soares. “O caso Marielle pode marcar um ponto de mudança no debate público, se nos dermos conta de que foram policiais que a mataram, com munição paga pelo Estado.”MILICIANOS – COMO AGENTES FORMADOS PARA COMBATER O CRIME PASSARAM A MATAR A SERVIÇO DELE