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Fotógrafos de favela: como artistas de comunidades atuam no combate ao preconceito social e exaltam os moradores

Fotos mostram o cotidiano das comunidades cariocas e exploram ângulos e temáticas que se contrapõem à violência como sinônimo de favela. ‘A favela sabe viver e festejar, mas a sociedade parece que só quer saber quando alguém morre’, diz fotógrafo Bruno Itan.

Tiros, morte, sangue, tráfico, violência. Para tentar ir além da imagem estereotipada das favelas cariocas, jovens moradores assumiram o papel de mudar a narrativa ao ilustrar o cotidiano local sob uma outra ótica.

Com suas câmeras, fotografam o dia a dia das comunidades: a brincadeiras de crianças, o bate-papo de vizinhos, a rotina dos trabalhadores e as paisagens que o morro vê, mas não costuma exibir mundo afora – ou não costumava.

Em homenagem ao Dia da Favela, celebrado na sexta-feira (4).

‘Será que ninguém vê esse pôr do sol?’

Jovem solta pipa no Complexo do Alemão — Foto: Reprodução/ Bruno Itan
Jovem solta pipa no Complexo do Alemão — Foto: Reprodução/ Bruno Itan

Com quase 15 anos de profissão, o fotógrafo Bruno Itan, de 34, vai colecionando fãs nas redes sociais. Só no Instagram, são quase 60 mil seguidores. Mas nem sempre a realidade foi essa.

“Eu pesquisava sobre o Complexo do Alemão e só via morte e pensava: ‘será que ninguém vê esse pôr do sol lindo que eu vejo? Por que as pessoas não falam sobre as coisas boas que tem na favela?’ Então resolvi mostrar eu mesmo. Já recebi muitas mensagens de ódio por isso, gente que fala que eu fecho com o tráfico, que eu sou bandido, mas recebo muito mais apoio e mensagem de carinho”, conta.

Bruno Itan recebe mensagens de apoio e agradecimento nas redes sociais  — Foto: Reprodução/ Bruno Itan
Bruno Itan recebe mensagens de apoio e agradecimento nas redes sociais — Foto: Reprodução/ Bruno Itan

Itan faz do seu perfil digital uma vitrine da favela. É no mundo virtual que o internauta encontra mais do que operações policiais – “faz parte e não tem como negar que acontece”, ele mesmo explica. Os cliques revelam o dia a dia dos moradores, as festas de carnaval. O final de semana agitado. O dia de chuva, o dia de sol. A criança que brinca de bola, boneca ou de pique.

“Eu fiz uma série de 10 anos de queima de fogos no réveillon do Complexo do Alemão. Fotografei a Copa do Mundo, a final da Libertadores. A favela sabe viver e sabe festejar, mas a sociedade parece que só quer saber quando alguém morre. Então, nesses momentos, eu estou lá pra fazer a minha parte. Para mostrar como somos felizes apesar de todo preconceito que vivenciamos diariamente”.

Foi por meio do trabalho fotográfico e das redes sociais que, em 2018, Bruno Itan registrou o menino Wallace Silva, na Vila Cruzeiro, Zona Norte do Rio, torcendo com uma camisa improvisada do jogador Phillipe Coutinho.

Morador da Vila Cruzeiro Walace Rocha usou camisa improvisada de Coutinho — Foto: Reprodução/ Redes Sociais

Morador da Vila Cruzeiro Walace Rocha usou camisa improvisada de Coutinho — Foto: Reprodução/ Redes Sociais

Bastou uma fotografia e uma publicação nas redes sociais para que, em poucas horas, o menino de 11 anos que não tinha condições de comprar uma camisa do Brasil, receber uma mensagem de ídolo, diretamente da Rússia. Recebeu a camisa, além de presentes dele e de outras pessoas comovidas com a história.


“A fotografia tem a capacidade de mudar vidas e é por isso que eu insisto e incentivo dentro e fora da favela (…) Pessoas de longe dizem que mudaram a visão que elas tinham da favela através das minhas fotos. Recebo mensagens de pessoas de fora do país que falam que puderam conhecer o cotidiano de uma favela”, conta Itan.

O trabalho dos fotógrafos locais impressiona até de quem vive nas favelas: “Já recebi mensagem dos próprios moradores falando que nunca tinham olhado pra comunidade da forma que eu vi”.

Rocinha Sob Lentes

Cotidiano da favela da Rocinha — Foto: Reprodução/ Rocinha Sob Lentes
Cotidiano da favela da Rocinha — Foto: Reprodução/ Rocinha Sob Lentes

A dicotomia entre o imaginário dentro e fora da favela também foi o pontapé inicial para Allan de Almeida Diego Caroso iniciarem sua atividade para tentar mostrar uma outra Rocinha para o mundo.

Cria da maior comunidade da América Latina, em São Conrado, na Zona Sul do Rio, Allan ficou incomodado ao ver uma operação militar realizada tomar uma proporção violenta nas notícias da cidade quando, na visão de quem vivia ali, não havia sido ação tão impactante assim.

“Só pelo fato de ser o Exército e ter um caveirão [veículo blindado], as pessoas já acreditavam que tinha acontecido um intenso tiroteio, com mortes, sangue, violência e tristeza. Mas eu lembro bem que não foi assim. Não teve tiroteio, nem mortos e a ação foi bem rápida. Então, ali, junto com meu amigo Diego Cardoso, tivemos a ideia de mostrar nós mesmos o que acontece aqui dentro.”

Allan conta que começou com um celular, dando voltas pela comunidade e retratando aquilo seus olhos viam no cotidiano da favela, mas que o resto da sociedade não tinha acesso – seja por medo, falta de interesse ou por preconceito mesmo.

A estratégia deu certo. O Rocinha Sob Lentes é hoje uma porta de entrada para turistas e conterrâneos desmistificarem a imagem ruim que a sociedade, crê o fotógrafo.

Via movimentada na Rocinha — Foto: Reprodução/ Rocinha Sob Lentes
Via movimentada na Rocinha — Foto: Reprodução/ Rocinha Sob Lentes

“Nós recebemos gente do mundo todo que conhece nosso perfil e diz que nunca imaginou que existia tanta beleza dentro da favela. A fotografia tem uma linguagem universal. Uma pessoa do Brasil ou do Japão consegue olhar a imagem e receber uma mensagem através dela, então nós prezamos por mostrar o lado bom, que muitos não conhecem”, afirma Allan.

Pessoas de dentro e fora da Rocinha agradecem e apoiam o trabalho do fotógrafos — Foto: Reprodução/ Rocinha Sob Lentes

Pessoas de dentro e fora da Rocinha agradecem e apoiam o trabalho do fotógrafos — Foto: Reprodução/ Rocinha Sob Lentes

Moradores da comunidade, conhecidos entre vizinhos, mas anônimos para o grande público, são clicados pelos fotógrafos. Cenas belas, porém quase invisíveis para quem vive no asfalto, começaram a ser compartilhadas, curtidas e comentadas nas redes sociais.

“Tem um senhor que eu via ele todos os dias cheio de plantas na porta de casa e uma vez chamei e pedi pra fotografar. Quando postei a foto, um monte de gente reconheceu e comentou, porque é o cotidiano delas virando uma fotografia, virando uma arte.”

Vendedor de flores segura um livro de fotos do Rocinha Sob Lentes com sua imagem — Foto: Reprodução/ Rocinha Sob Lentes

Repercussão internacional

Jovens de grupo musical do Morro do Turano seguram instrumentos no lugar de armas   — Foto: Anderson Valentim/Projeto Favelagrafia
Jovens de grupo musical do Morro do Turano seguram instrumentos no lugar de armas — Foto: Anderson Valentim/Projeto Favelagrafia

Uma imagem de cinco jovens, com a cabeça coberta com camisas, portando instrumentos musicais, no morro do Turano, Zona Norte do Rio, rodou o mundo. Até o rapper norte-americano Snoop Dogg compartilhou a cena.

Para o diretor de cinema Anderson Valentim, conhecido como Tonvalentim, o segredo do sucesso da imagem que ele cilcou foi o impacto visual.

“As pessoas têm mania de olhar pra um jovem, principalmente negro, dentro da favela, com a cabeça coberta e achar que é bandido. Eu tive a ideia justamente para desmistificar essa imagem”, explica o fotógrafo de 38 anos.

Menina posa para o Favela Grafia  — Foto: Reprodução/ Tonvalentim
Menina posa para o Favela Grafia — Foto: Reprodução/ Tonvalentim

Segundo Tonvalentim, o projeto é o carro-chefe do seu trabalho e gerou um impacto positivo além do que ele poderia ter esperado.

Menino curtindo dia de sol na Rocinha — Foto: Rocinha Sob Lentes
Crianças brincando no Complexo do Alemão — Foto: Bruno Itan/Arquivo pessoal
Barbeiro se aprontando para trabalhar na Rocinha — Foto: Reprodução/ Rocinha Sob Lentes
Menino toca instrumento musical na favela do Borel, na Tijuca — Foto: Anderson Valentim/Projeto Favelagrafia
Via movimentada na Rocinha — Foto: Rocinha Sob Lentes
Jovem da Providência fotografa antigos moradores da favela — Foto: Projeto Favela Grafia/ Joyce Marques

Fonte: g1

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