Economia

Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira, são tidos como fraudadores na derrocada das Lojas Americanas

A descoberta de “inconsistências contábeis” da ordem dos bilhões e o subsequente pedido de recuperação judicial das Lojas Americanas, aceito pela Justiça do Rio na quinta-feira (19), abriram um novo capítulo na história de Jorge Paulo Lemann.

Entretanto, quem acompanha de perto a trajetória do empresário e filantropo brasileiro não se surpreendeu. Credores fizeram questão de lembrar que o rombo na rede varejista não é a estreia de Lemann e seus sócios, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira, na área das escorregadas e escândalos corporativos.

1998: o banco Garantia, criado por eles nos anos 1970 com uma “gestão ousada”, esteve perto da falência. Antes do fracasso, foi vendido ao Credit Suisse First Boston

2014: a Cosan, que adquiriu a ALL (América Latina Logística), afirmou ter encontrado a malha ferroviária da companhia em frangalhos e práticas fraudulentas para inflar resultados. A percepção era que o grupo, que havia deixado o controle da ALL havia 10 anos, mantivera um estilo de gestão ao qual são atribuídos muitos desses escândalos

2021: o trio teve de fazer um acordo com a SEC, equivalente americana à CVM (Comissão de Valores Imobiliários), para encerrar uma investigação sobre má-conduta contábil na Kraft Heinz entre 2015 e 2018. A multa paga foi de US$ 62 milhões.

Ainda em 2021, a Stone, “unicórnio” (startup que vale mais de US$ 1 bilhão) da qual o grupo detém 4% das ações, teve problemas enormes de concessão de crédito, por “erros de experiência com recebíveis”, segundo o CEO da empresa. Naquele ano, a fintech perdeu 80% de valor de mercado.

Na noite de domingo (22), o trio de acionistas divulgou nota em que afirmam que, “assim como todos os demais acionistas, credores, clientes e empregados da companhia, acreditávamos firmemente que tudo estava absolutamente correto”. Para boa parte das fontes, contudo, é improvável que o trio não soubesse o que estava acontecendo nas Americanas. O estrago na imagem de “empresário do bem”, cultivada por por Lemann ao longo de décadas, parece ser irreversível.

Imagem: Reuters

‘Semideuses do capitalismo’

Lemann, Telles e Sicupira controlaram as Americanas por quase 40 anos (de 1982 a 2021) e detêm juntos pouco mais de 30% das ações da empresa, são seus maiores acionistas. Por isso, são chamados de “acionistas de referência”, com grande poder de negociação no conselho administrativo.

No final de 2022, logo após o anúncio da contratação de Sérgio Rial, ex-Santander, como novo CEO das Americanas, o BTG Pactual estava otimista com a companhia. A recomendação do banco era de compra de ações da varejista, com perspectiva de alta. O preço-alvo, para o BTG, era R$ 29. Na época, os papéis das Americanas oscilavam abaixo dos R$ 10.

Mas, diante do pedido de demissão de Rial em 12 de janeiro, alegando que R$ 20 bilhões em dívidas não apareciam no balanço da empresa, advogados do BTG passaram a tratar os empresários como ardilosos fraudadores. Na petição enviada à Justiça para tentar reter R$ 1,2 bilhão em dívidas da varejista, as inconsistências no balanço foram classificadas como “fraudes”, feitas de “má-fé” e de forma premeditada por “semideuses do capitalismo” “dando uma de malucos”.

O BTG foi o banco que se posicionou de forma mais agressiva, mas não foi o único que se sentiu traído. Segundo reportagem do Valor Econômico, sete instituições financeiras credoras das Americanas tentaram reverter a decisão da recuperação judicial.

Executivos de bancos ouvidos pelo Valor classificaram a postura do trio como “arrogante” e chegaram a afirmar que não fariam mais negócios com nenhum dos três empresários. A dívida atual da companhia está na casa dos R$ 43 bilhões. As consequências do rombo para 16,3 mil credores e os cerca de 40 mil empregados ainda são incertas.

Sede da AB Inbev em Leuven, na Bélgica Imagem: Jasper Juinen/Bloomberg

Culto à ambição

A fama de Lemann foi construída sobre um modelo de gestão inovador para os padrões brasileiros e também por ações ousadas e grandiosas, com ampla repercussão nos mercados brasileiro e internacional.

Na década de 1970, o Garantia foi um dos pioneiros na adoção de remuneração segundo desempenho. A estratégia permitia à empresa atrair gente competente e com gana de enriquecer. Era o início de um culto à ambição e à meritocracia que influenciaria mais de uma geração de empresas brasileiras.

Em 1982, com Sicupira e Telles já como sócios, Lemann entrou nas Lojas Americanas. A companhia passava por dificuldades, mas tinha imóveis próprios. O trio comprou o controle da empresa (70%) e iniciou uma série de ajustes. As ações subiram e eles recuperaram o investimento vendendo uma fração das ações.

Foi com a fusão entre as rivais Brahma e Antártica, no final dos anos 1990, que Lemann ganhou fama fora do mundo corporativo. O negócio daria origem à Ambev, que nos anos seguintes fundiu-se a outras até se tornar a maior do mundo (AB Inbev), a partir da compra da Anheuser-Busch, dona da Budweiser.

Foi de Lemann a iniciativa de criação da primeira empresa de “private equity” do país, a GP Investimentos. Com ela, o trio entrou no capital de empresas como Telemar, Gafisa e ALL, nos anos 2000. Depois de vender a GP a um grupo de empregados, os três empresários criaram a 3G Capital, com foco no mercado internacional. Adquiriram o Burger King, em 2010, e o fundiram com a Tim Hortons, dando origem à Restaurant Brands International. Também se associaram ao megainvestidor Warren Buffett para comprar a marca de ketchup Heinz. Em 2015, em um de seus últimos grandes movimentos, a 3G fundiu a Heinz à Kraft, criando a Kraft Heinz.

Envolvidos em negócios cada vez maiores, Lemann, Telles e Sicupira passaram a frequentar as listas dos mais ricos do Brasil. Na edição de 2022 do ranking brasileiro da Forbes, os três ocupavam o primeiro, o terceiro e o quarto lugares, com fortunas estimadas em R$ 72 bilhões, R$ 48 bilhões e R$ 39,85 bilhões, respectivamente.

Mas o estilo de administração do grupo, baseado em uma rígida gestão de custos e ganhos de escala, tem perdido apelo com a economia digital. Para se alinhar à nova realidade, Lemann tem se aproximado de startups e investido em fundos de “venture capital” – a compra de ações da Stone foi um deles.

Efeito dominó

Com o escândalo das Americanas, a expectativa é que acionistas de outras empresas controladas pelo trio peçam auditorias para saber se o problema não é maior do que parece.

Embora se especulasse, na semana passada, que Lemann e seus sócios colocariam recursos próprios na companhia para que ela continue a operar normalmente, nada foi dito a respeito. Na nota, dizem que, como acionistas, também foram “alcançados por prejuízos”.

Até aqui, o fascínio gerado por grandes transações, investimentos em filantropia e livros exaltando a trajetória do trio vinham sendo suficientes para eclipsar os tropeços. Daqui para frente, será preciso mais que isso para retomar a confiança do mercado. Lemann, aos 83 anos, ocupa agora o centro de um dos maiores escândalos corporativos do país.

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