Papai Noel da morte, segue um mistério 35 anos depois no crime da rua Cuba
Lá se vão três décadas e meia de um caso no qual fui envolvido até o pescoço. Acreditei que o crime tivesse sido desvendado. Polícia e Ministério Público disseram e escreveram que eu estava certo. A Justiça preferiu, bem ao contrário, decidir que não.
Falo sobre o crime da rua Cuba, que aconteceu na véspera do Natal de 1988. Papai Noel não foi de trenó ao número 109 da rua, mas levando, em vez de presentes, um revólver que seria utilizado para matar um casal, em seu quarto. O bom velhinho veio para trazer um mistério que promoveu discussões, debates, insultos, xingamentos, defesas, ataques e dúvidas. Tudo junto para responder a uma pergunta: quem foi?
Foi ou não foi, eis a questão. O delegado do Departamento de Homicídios, José Augusto Veloso Sampaio, achou que tinha encontrado a resposta. O promotor que acompanhava o caso, Luiz Antonio Marrey, endossou tudo o que o delegado pensava. O processo começou com autoria indefinida, misteriosa.
Dentro da casa, estavam dois filhos do casal, e um terceiro havia saído. Ele disse que a família tinha o hábito de tomar juntos o café da manhã, mas naquele dia o casal não saiu do quarto. Ele disse ter saído à rua a fim de avisar o primeiro carro da polícia que encontrasse. Assim foi.
O corre-corre, o vai e vem agitado, tomou conta da casa. Jorge Toufic Bouchabki, o marido, tinha um tiro na cabeça. Maria Cecília Delmanto, a esposa, também. A mulher, que pertencia a um clã de advogados, entre eles o lendário Dante. Junto a Jorge, pertencia à sociedade paulistana.
Quando a polícia chegou, havia cerca de 40 pessoas no interior da casa, o que prejudicou sensivelmente a perícia in loco. Restou ao delegado Sampaio vistoriar a casa, descobrir que não havia qualquer sinal de arrombamento e delimitar a cena do crime em dose dupla. Pediu o exame necroscópico e os corpos foram enviados ao Instituto-Médico Legal.
Resultado: tiros certeiros, disparados à queima-roupa, os projéteis alojados na cabeça, e a sequência determinando que ele foi alvejado primeiro e ela, já sabendo o que a esperava, recebeu o segundo tiro logo em seguida.
O delegado Sampaio, porém, ao examinar os laudos elaborados por legistas, percebeu — como esteve no local do crime — que a descrição dos orifícios de entrada e saída não coincidiam. Estavam descritos de forma inversa, ou seja, o de entrada como sendo de saída e o de saída como entrada.
Diante disso, os dois corpos precisaram ser exumados, enquanto no Instituto-Médico Legal se discutia como um erro tão crasso fora cometido. As festividades do final de ano, talvez.
Mas aconteceu que o segundo laudo, feito com a exumação, também padeceu de erros.
A polícia decidiu mudar de rumo. Os corpos foram exumados pela segunda vez, as cabeças cortadas e colocadas numa caixa de isopor para serem levados ao Instituto-Médico Legal de Campinas, agora para uma nova perícia, só com as caixas encefálicas, porque os alvos dos tiros estavam exatamente nelas.
Dúvidas para cá e para lá levaram o delegado Sampaio e o advogado da família, José Carlos Dias, a se engalfinhar num duelo jurídico, que demorou até chegar à barra do Tribunal. O palco do crime se transformou em foco de tudo que se possa imaginar: alguém, na rua, o vigia talvez, poderia ter ouvido o barulho dos disparos? Por que o cão da casa ao lado não latiu? Alguém teria sido visto entrando ou saindo da casa furtivamente?
Não, não e não. Um caso para bons detetives, como os fictícios Sherlock Homes, de Conan Doyle, ou Hercule Poirot, de Agatha Christie. Mas ali só poderia imperar o primado do real, o que tornava a coisa cada vez mais difícil. Teses e teorias de um lado, descrédito e dúvidas de outro.
Nesse trajeto, longamente percorrido, o promotor Marrey estava todo dia no Departamento de Homicídios. Levava sempre consigo um guarda-chuva a tiracolo, embora não chovesse um só dia. Marrey, mais tarde, seria o procurador-geral de Justiça de São Paulo, o chefe maior do Ministério Público Estadual. Possuía credenciais respeitadas no órgão constitucionalmente fiscal de lei. A defesa, porém, considerava ineptas as suas intenções probatórias.
O tempo passou e a bruma do tempo foi envolvendo o caso, até porque outros episódios, igualmente de grande repercussão, ganharam os espaços de destaque. Diante disso tudo, escrevi um livro, O Crime da Rua Cuba, usando parcialmente da ficção para narrar bastidores desconhecidos nas investigações. O livro foi um best-seller.
Um dos filhos do casal Bouchabki me processou, pleiteando direito ao esquecimento e pedindo, judicialmente, que meu livro fosse apreendido em todas as livrarias e incinerados. Nunca pensei num desfecho pirotécnico para qualquer um dos meus 19 livros. Defendi-me com a advogada Tania Lis Tizzoni Nogueira, e a Justiça decidiu o óbvio, isentando-me de qualquer tipo de imputação, porque lutar contra fatos é inútil.
Na Justiça, após uma série de provas e contraprovas, o caso da rua Cuba não foi submetido a júri popular, apesar dos recursos impetrados pelo Ministério Público, inconformado com a tese, que considerou improcedente, de ausência de provas.
Se assim é se lhe parece, como diria Pirandello, a vala comum do esquecimento, e não a sua teoria, levou o duplo homicídio a ser considerado prescrito, depois que vinte anos de passaram.
O crime da rua Cuba pode ser considerado uma aula para delegados, promotores e juízes. Aos primeiros, cabe investigar, com ênfase nos crimes de autoria desconhecida, o que, aliás, deixa muito a desejar na realidade brasileira. Aos segundos, concordar ou discordar da polícia. Em concordando, oferece denúncia, sem a qual não existe processo criminal. Ao magistrado, o terceiro na sequência, examinar com competência jurídica e a indispensável consciência, para decidir sem tomar partido ou exibir tendências.
Se o ponto final foi justo ou injusto, é preciso considerar a natureza e o conteúdo do processo. Mais vale um culpado inocentado do que um inocente condenado, dizem no Fórum. As decisões, muitas vezes, não conseguem agradar a gregos e troianos. Entretanto, direito do público não pode se confundir com direito público. Essa decisão consciente pode provocar indignações.
Mas a lei é o juiz mudo, como escreveu Aristóteles. Então, vamos aceitar que a lei foi cumprida, sem pedir nada para Papai Noel, e que o caso da rua Cuba continuará misterioso para sempre. Responder quem foi não está na caixa de presentes.
Fonte: r7